sábado, 7 de abril de 2018

Maus cheiros



Em matéria de maus cheiros, sou "Pró"! Tenho currículo de invejar, pois fui introduzido cedo no “cheiro a humanidade”.

Da escola primária, não tenho dessas memórias. No Liceu, o “Texugo”, pouco dado a banhos e a mudanças de indumentária, tinha fama de trazer um cão morto dentro das calças. Ele e um amigo, que nunca se responsabilizou por uma pestilência, no meio de forte tempestade, em Pardilhó, na carlinga de um Vauxhall de 1939, foram os únicos a deixar marca no meu sistema límbico, por todos os outros terem dado oportunidade de fuga ou terem tido curta duração.
Aos 15 anos, tive a minha primeira prova de fogo. Levado pelo que o cio me obrigava, inalei sovaco retardado e halitose de todo o tipo, entremeado com perfume barato misturado com vinagre, do cabelo das garotas mais espigadas dos bairros sociais do Porto, quando me iniciei nos bailes de S. João.

Para efeitos oficiais, estas experiências iniciáticas, pouco mais fizeram que dar estabilidade à minha pituitária, preparando-a para o que a vida me havia reservado e evitar que o choque olfativo do meu primeiro estágio, na década de 70, nas enfermarias do Hospital de S. João, me encurtasse os dias.

Por uma questão de comodidade, entrava por uma das portas laterais do jardim e estacionava o meu R5 no lado poente do edifício. Infiltrava-me pela porta da ala vizinha, subia ao 4º piso, e atravessava as enfermarias de Neurologia, Ginecologia e de Medicina, até chegar ao cacifo onde guardava a bata.
Só a Ginecologia não tinha doentes no corredor e, às vezes, cheirava a café. Nos outros, as enfermarias (de 9 e mais camas) transbordavam.

Nos primeiros tempos, parava, trinta segundos, no primeiro patamar, fazia três inspirações fundas, e atravessava os primeiros cinquenta metros de corredor sustendo a respiração até ao átrio antes do Serviço seguinte. Entre hiperventilações e apneias chegava ao meu destino. Depois, vestia a bata, pegava nos processos e corria para a biblioteca do serviço. Aí, revia os registos e aguardava o fim das higienes nas enfermarias.

Este sol, foi de pouca dura. Ao fim das primeiras semanas a ver doentes em todos os serviços do hospital, estava apto a identificar o piso e o serviço, se lá me colocassem de olhos fechados (desde que tal acontecesse às primeiras horas do dia) e, ao fim de um ano, tinha até adquirido a capacidade de diferenciar algumas das patologias lá internadas, como abcessos pulmonares por anaeróbios ou pseudomonas, insuficientes renais crónicos, doentes em coma hepático ou com melenas ... a uma distância mínima de dez metros (curvas incluídas).

Foi o auge da minha carreira olfativa pois, de lá para cá, foi um progressivo "ó p'ra baixo", de tal modo que, em meia dúzia de anos, passei a ignorar a maioria dos maus cheiros, salvo o do sovaco requentado, em fim de dia de verão, que ainda me faz arder os olhos.

Mas eu que julgava ter já experimentado os "créme de la créme" da agressão olfativa, fui recentemente surpreendido com uma nuvem de pestilência, saída de uma sala, onde dormiram vinte doentes de ambos os sexos.
Um bafo viscoso espessava o ar e, qual onda de maré, espraiou-se ao longo de toda a minha árvore traqueo-brônquica.
Olhei as duas enfermeiras na secretária em frente. Pareciam náufragos protegendo-se atrás dos écrans dos computadores. Estavam verdes como as fardas que vestiam.
A medo exclamei: - Pelas barbas do profeta! Estais vivas?

Uma delas levantou os olhos congestinados e rouquejou com voz sumida. : - Senhor Jesus! Deus do Céu! Estamos aqui há oito longas horas, sem dar vazão aos traques, arrotos, vómitos, suores, fezes e fraldas ensopadas, sem vento que nos proteja, nem ar condicionado que nos alivie, que ele bufa para cima das macas e os que estão melhorzinho queixam-se. Que Teutatis nos ajude, já que os deuses da nossa terra tardam em ouvir as nossas preces!

O ar que entrara na sala comigo, acordou o doente mais próximo. Da sua boca saiu um bocejo de múmia e uma longa farpa quente de febre, troou como a derrocada de um talude.
Estanquei. O instinto de sobrevivência exigia uma fuga e o de solidariedade, que mais não fosse, umas palavras de conforto àquelas duas vítimas. Mas impunha-se uma continuidade ao serviço e, cobardemente, virei costas, deixando as pobres ao seu destino.

No dia seguinte perguntei por elas. Estavam vivas. Haviam regressado a casa pelo próprio pé e recuperado a cor.
- Graças a Deus!, respondi, aliviado. - Felizmente que o teor de ácido sulfídrico não estava em níveis letais e que a tolerância tem Dia Internacional a 16 de Novembro.

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