sábado, 21 de janeiro de 2017

Uns cachaços



Estava em vias de fechar o SClinico, quando a enfermeira da Manchester, me abordou.
- Dr.! Espere um pouco! Triei agora mesmo um doente para si!
É uma rapariga agradável, que sabe estar mesmo quando a confusão é mais que muita e que nunca me penaliza se eu me "passo". Sem grande convicção, como a resistir-lhe, antes de me sentar de novo, arrisco:
- Oh! Teresa! Eu amanhã tenho de estar no Serviço às oito!

Não vale a pena. Ela sabe que me é impossível dizer-lhe não, e continua.  
- Está acompanhado pela GNR. É só para decidir se vai transferido para Psiquiatria. Dizem que bateu na mãe!
- Para Psiquiatria!? Agora os agressores vêm para o Serviço de Urgência? Não me digam que enviaram a vítima para a Cadeia?, digo, antes de lhe ver os antecedentes.
Depois, dou uma rápida passagem pelo seu historial no computador.
Tem 30 anos. Há seis meses foi trazido para uma observação compulsiva e foi orientado para o CRI (Centro de Respostas Integradas) por dependência alcoólica e tabágica. Última consulta há 4 meses. Faltou à seguinte.

Está acompanhado por um irmão que quer falar antes que o doente entre.
- Faz favor! Então o que é que se passou?
- Foi o meu irmão que bateu na minha mãe. Já não é a primeira vez! Há um ano que anda alterado, bebe e faz desacatos. Ultimamente anda para aí a dizer que a minha mãe e eu lhe ficámos com um prémio que ganhou no Euromilhões. 
- E droga-se?, pergunto, por o ter lido no registo da consulta de Psiquiatria.
- Isso não sei, que eu não vivo perto! Ele esteve três anos emigrado, a trabalhar na construção. Quando veio ficou a viver em casa da minha mãe, mas como não trabalha, os conflitos com ela têm vindo de mal a pior. Ele não está bom da cabeça.
- Ok! Espere um pouco lá fora! Já percebi que você também anda na mira dele!
- É verdade! Ele só não se atira a mim porque tem medo que eu lhe dê forte!

Sai um e entra o outro, acompanhado por um GNR.
- Faz favor de se sentar!
É um homem forte com mãos grossas e botas de trabalho bem gastas. Usa uma sweatshirt cinzenta com capuz e uma jeans azuis já esquecidas do cheiro do sabão.
Olha para trás, para confirmar se o GNR também entrou. Senta-se mole e de olhos baixos. Responde contrafeito.
- Você sabe porque é que o trouxeram aqui, ao Hospital?
- Deve ter sido por bater na minha mãe!
- E você estava bêbado, ou quê?
- Eu só bebi um copo ao jantar!
- E hoje consumiu droga?
- Fumei um charro, mais nada!
- E você acha bem ter batido na sua mãe?
Levanta os olhos, como a rebobinar o filme dessa noite e, depois de alguns segundos em que me olha de soslaio, responde, a desmerecer todo aquele envolvimento despertado pela denuncia do seu acto:
- Eu só lhe dei uns cachaços!

- Ahh!

São 24h. Não tenho condição para lhe avaliar a disfunção. A minha vontade é receitar-lhe uma noite nos calabouços e que venha amanhã para observação por psiquiatria, mas, como não falta para aí gente disposta a criar problemas a quem se preocupa com os gastos públicos, contenho-me e pego no telefone, enquanto lhes peço para aguardarem fora da sala.
- Está!? Sra. Telefonista. Por favor faça-me uma chamada para o Hospital Central.

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