quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Humm Hamm


-Olha lá! Hás-de ver aquilo ali da cara da tua mãe. Tenho posto muito creme, mas está cada vez pior!
-OUTRA VEZ!?
Confesso que reagi assim. Volta meia volta lá vem a conversa da lesão da face. Hoje tem, amanhã não é importante…, afinal tem, afinal não era nada e já está melhor…
Eu sempre fui olhando e o aspecto nunca me impressionou. Mas desta vez saquei do telefone e logo ali agendei uma consulta de Dermatologia para 5ª feira, no hospital privado. Afinal tem que se pôr a render a ADSE. Não fico a dever favores a ninguém. poupo uma ida ao Hospital público e acabo com esta cena de uma vez por todas.
-Humm, Hamm, Humm! Achas mesmo que é necessário?
- Agora vai. Queiras ou não!

Dois dias antes da consulta:
-Olha lá! Afinal não é necessário levares a tua mãe à consulta de Dermatologia. Tenho posto bastante creme e já quase não se nota.
-Agora vai!, respondi, seca como só eu sei ser.
-Humm, Hamm, Humm, Hamm! É que ouvi um programa na televisão sobre infecção hospitalar. Não sei se sabes mas morrem mais pessoas de infecção com bactérias hospitalares do que de acidentes de automóvel e eu não quero ir ao hospital e vir de lá mais doente porque os profissionais não lavam as mãos e não mudam de roupa. Isto nos hospitais está muito mal! Eu ouvi e acho uma pouca vergonha, ...blá, blá…
Vesti-me de paciência e dissertei sobre infecção hospitalar…
- Hummm,…Hammm,…Hummm! Bem, vamos lá… se tu dizes!.

Chegado o dia e, bem antes da hora marcada, chegamos ao hospital para termos tempo de procurar o local e ultrapassar todos os obstáculos previsíveis, desde o estacionamento até as burocracias inerentes ao registo.
Sentados na sala de espera tentei a minha sorte:
- Entro eu ou entras tu com a mãe?
- Humm, Hammm, Humm! Porquê? Não podemos entrar os dois? Hummm, Hammm, Humm! Está bem vai tu! Mas eu quero saber tudo!
Estratégia definida e já em castelhano sonoro se ouvia: Maria Antonieta

A dita levantou-se pesarosa como se fosse para o cadafalso. Ombros tombados, sobrancelhas caídas a acompanhar o arco descendente das comissuras labiais A carteira pendia do braço prestes a despenhar-se. Olhos em alvo, como só ela sabe fazer, mal cumprimentou o médico que, no seu melhor castelhano, a mandou sentar.
-Entonces de que se queixa?, perguntou, falando muito alto e com a boca aberta, tal como nós fazemos quando falamos castelhano.
Sem falar, apontou com a unha do indicador, impecavelmente rubra, a lesão da face… O olhar mantinha a gravidade no acto…olhos em alvo.
De um pulo o Doutor saca da lupa e assesta-a na lesão e, de imediato, grita:
-No tem problema! Es benigno. No es maligno, nem nunca va a ser! No tem problema! Pode descansar! Se quiera podemos sacar, mas fica una mancha! Es igual!
Agora já os olhos da paciente retomam a linha do horizonte e ainda de lábios cerrados, levanta os dedos unidos que abre e fecha à face do doutor.
-Tienes medo!? No tengas! No es nem va a ser malo!.
Nestes 3 segundos estava concluída a consulta mas ainda consegui pedir ao doutor para repetir ao meu pai as boas notícias. Que sim, mas fez-me sentir que teria de ser rápido.

Lá o trouxe até ao consultório e quase consegui que não se sentasse. Repetiu então o médico a boa frase, no mesmo tom de voz, como se fossemos todos portugueses a falar espanhol com a boca aberta.
-Humm, hamm, hummm, hamm! Eu tenho posto bastante creme…
-Vamos lá que está tudo bem!, disse eu enquanto o levantava para o empurrar porta fora.
-Hummm, hammm! O sr. dr. não é português?
-No! Espanhol!
E já com o corpo fora do consultório – Hummm, Hammm! Então quer dizer que não é psoríase?? ... Ainda bem!


Texto de Helena Gomes (
my sister)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Piloto



O Piloto apareceu na minha pensão em Aveiro. Entrou a cavalo e passeou-se pelos corredores com a cabeça baixa, para não ser reconhecido, como se um tipo com ar de caubói (até lenço no pescoço trazia) pudesse passar despercebido. Chegou ao fim do corredor (eu estava no piso de cima, consegui ver tudo com clareza), olhou cabisbaixo para os lados, deu meia volta, atravessou novamente o corredor vagarosamente e saiu pela porta por onde 3 minutos antes havia entrado. Não houve azáfama, toda a gente o viu e todos continuaram seu ritmo lento de se mover pelo espaço.
Enquanto me dirigo para o quarto (é capaz de ser boa ideia antes que isto dê para o torto) constato que estou a ser preconceituosa. É que eu devo ser a única portuguesa que não sabe a cara do piloto (estou fora do país e sou mais de ouvir as notícias) e em Portugal os 'most wanted' não aparecem nos pacotes de leite. Estou claramente a fazer a generalização piloto, caubói, Malboro man, é tudo a mesma coisa - nunca fiar!
Quando chego ao quarto, reparo que infelizmente este não tem paredes, mas antes umas grades baixas, estilo coreto, e que tem até a forma arredondada. Reparo também que, como é costume, é um quarto partilhado e assim, a grosso modo, estamos lá cerca de 15 e um cão. Surpreendentemente, não há camas. As única peças de mobiliário são uns bancos espalhados, aleatoriamente, pelo espaço vazio. Desvio com jeitinho o cão, e sento-me ao lado do velho que deve ser seu dono. Olho à volta. Está tudo como eu, à espera que aconteça alguma coisa, à excepção do cão que, depois do meu empurrão, já encontrou novo espaço e está novamente enrolado a dormir. É então que vemos o caubói subir as escadas. Desta vez sem cavalo, mas exactamente ao mesmo ritmo pesaroso. Esta coisa de não haver paredes dá para os dois lados - se por um é óptimo, porque o vemos mal ele chega ao primeiro piso, por outro ele também está de olho em nós mal põe o pé no último degrau das escadas. Obviamente, ou não fosse eu uma tipa cheia de sorte, ele dirige-se para o meu quarto. As pessoas começam encostar-se umas às outras. Uma mãe abraça uma criança pequena. Eu encosto-me um pouco mais ao cão que apenas levanta a orelha e a pálpebra direitas e me olha de soslaio como quem diz não sei o que se está a passar, mas já estás a abusar. Olho para o velho - olha para os sapatos rotos sem vontade nenhuma de daí tirar os olhos. Tento elaborar, sem levantar sobrolho, um discreto plano de fuga, mas este é sempre mais difícil em áreas pi ao quadrado, sem esquinas obscuras ou cantos refundidos, e, ainda antes ainda de me imaginar a fazer uma pirueta e um mortal à retaguarda por cima das grades do quarto, ouço uma voz metálica a chamar baixinho, com sotaque estranho 'Helêna'. Pára-se-me o coração. Já fui! É sempre a mesma coisa! Olho para o caubói e reparo que também ele está com um ar perdido, à procura da origem da voz. Não me mexo, pode ser que ninguém saiba que me chamo Helena ou que haja outra 'Helêna' na sala. Entretanto, o 'Helêna' ouve-se outra vez, mais forte, e, desta vez, toda a gente olha para mim.
Fecho os olhos com força e torno-me religiosa por uns segundos a pedir a dEUS que não me mate já. Abro os olhos e, felizmente, acordo.
A senhora R chama outra vez o meu nome pelo intercomunicador. Salto da cama e corro para a lhe dar o braço. São 6 da manhã na Inglaterra. Tudo certo. dEUS existe e safou-me desta.



Texto de Helena Ferreira Gomes (
my daughter)

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Aplicações de Telemóvel



- Dr.! Está um “verde” na Sala de Espera, a aguardar Medicina, que está muito ansioso. É melhor ver o que se passa. Já começou a disparatar e eu temo que vá causar mais confusão do que aquela que já temos, se não for atendido rapidamente.
- Há três laranjas em lista de espera para Medicina Interna, mas mande lá entrar o homem, não vá haver razões para tanto nervoso!
Olho para o écran e procuro um “verde”. É uma transferência. Já foi observado pela Triagem Geral. Registou-se à uma da madrugada, e foi encaminhado para Medicina pouco antes das oito, depois de ter efectuado análises.

A Triagem de Manchester tem destas coisas. Se estiverem a entrar “vermelhos” ou “laranjas” com regularidade, os tempos de espera dos doentes a quem foram atribuídas outras cores começam a ser ultrapassados, e como os “verdes” são “pouco urgentes”, são frequentemente entendidos como “azuis” - “nada urgentes” e só são observados quando já não há outras prioridades.

São nove horas, quando o chamo.
Entra um jovem na casa dos 20 anos. Cabelo rapado dos lados e um tufo no cocuruto. Camisa branca desabotoada a partir do meio, manga dobrada, jeans que deixam ver os tornozelos, sapatos de matar a barata no canto em couro castanho claro e uma pequena sacola a tiracolo de sarja amarela.
- Faz favor de se sentar! O que se passa?
Recusa sentar-se de imediato, para se queixar do tempo de espera. É brasileiro e está em Portugal há uma semana. Veio ao Serviço de Urgência porque teve uma relação com um parceiro HIV-positivo e, no final, rompeu o preservativo. Está zangado, porque ainda não foi medicado e sabe que há uma janela temporal para que esse tratamento possa ser eficaz, em caso de contágio.

- Já percebi o seu problema, mas entenda que, durante a noite, há funcionalidades que se perdem num Serviço de Urgência e, no seu caso concreto, a eficácia da profilaxia pós-exposição mantém-se durante 72h. Por isso, temos tempo para avaliar correctamente a situação, antes de iniciar qualquer atitude.
Já mais calmo, o homem senta-se.
- Então vamos lá ver. O senhor disse que o seu parceiro era VIH-positivo!?
- Sim! Foi ele que o disse, quando rompeu o preservativo. Eu antes não o sabia. Se eu o soubesse não me tinha metido com ele!
- E como é que ele se chama?, pergunto na esperança de conseguir ver no S.Clínico alguma informação sobre o estadio da doença e da carga vírica do parceiro.
- Não sei!, responde. – Sei só que se chama Manuel! Mais nada!, e depois virando para mim o écran do smartphone. – Também posso lhe mostrar a cara! É este!
- Oh! Homem! Vire isso para lá, não vá eu até reconhecê-lo! Mas o senhor mete-se numa aventura destas e não sabe o nome dele?
- Não! Eu pus três aplicações no telefone e apareceu ele! Só sei o primeiro nome e sei a cara dele! Quando ele disse que o preservativo rompeu, fiquei em pânico e fui à Farmácia pedir o tratamento. E sabe o que o farmacêutico me deu??? ... Sabe!? … A pílula do dia seguinte, para não engravidar! … Você acredita!!!!, e gesticulava virando as palmas das mãos e os olhos para o céu. - Deus do Céu!! A pílula! Eu sou HOMEM! Santo Deus!, e repetia os gestos, incrédulo, para depois se recostar na cadeira, simulando exaustão.
- Tenha calma, que o farmacêutico não deve ter percebido que você estava numa relação homossexual e talvez tivesse entendido que estava preocupado com o risco de a gravidez indesejada de uma sua parceira!, respondo, para amenizar uma eventual provocação, e continuo. - Vou pedir ao laboratório para completar as suas análises e marcar-lhe uma Consulta para daqui a um mês. Quanto ao tratamento, vai ter que aguardar mais um pouco porque temos de o pedir à Farmácia do Hospital. Espere um pouco naquela salinha, ali ao fundo, que quando estiver tudo pronto, vou ter consigo! OK!

….

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Mulheres



Há as "bem boas" de Ermesinde
e as foleiras do Bolhão!
Há as das Antas, as da Linha
As de Faro e de Monção!

Há as malvadas, complexadas,
que não perdoam nem esquecem.
Há as que “falam senão rebentam!”
E as que fingem que obedecem!

Há as que se matam para agradar
e se condenam de antemão.
Há as desprevenidas, que não reagem
A quem é fácil dizer não!

Há as de suspiros vulneráveis
a caprichar no visual.
E há infantas guerreiras
Neste nosso Portugal!

Há inteligentes e poderosas
e outras que se reinventam.
Há as que têm muita fé
E que com pouco se contentam!

Há mulheres fatais perversas
que abusam da indiferença.
Há as feiticeiras sensuais
à espera do Amor, a recompensa!

Há as belas, as amarelas,
as puras e as inseguras.
As que posam p'rá a Play Boy
E as que causam desventuras!

E … por fim, hás ... tu, ...
que lês isto e que m'aturas!!

Bem Hajas!

sábado, 15 de outubro de 2016

terça-feira, 11 de outubro de 2016

Sapiens




Yuval Noah Harari é historiador, investigador e professor de História na Universidade Hebraica de Jerusalém. É Doutorado em História pela Universidade de Oxford.

Este livro é um relato electrizante sobre a aventura da nossa espécie – de primatas insignificantes a senhores do mundo, que nos faz questionar a história do homem, as suas conquistas, religiões, filosofias e progresso tecnológico. Um livro imperdível para quem gosta de pensar, que impressiona pela quantidade de informação, oferecida em linguagem acessível e espirituosa.

Sapiens foi lançado, em 2011, em Israel. É um best-seller internacional. Está publicado em quase quarenta países...

sábado, 8 de outubro de 2016

Lembranças do Olimpo (20)


Hipólito andou ao longo da orla do mar, subiu as dunas, depois uns rochedos e meteu-se pela veiga até à povoação mais próxima. Uma boa hora e meia com passo estugado.
Levara na cabeça um Panamá fino, que o protegia daquele forte sol de Setembro, mas esquecera a água e, no fim do caminho, a sede obstinava-o para uma qualquer fonte ou Café onde a pudesse satisfazer.
A terriola parecia deserta e, não fora o ruído de um prato a partir-se, passaria pela tasca sem reparar que estava aberta.

Entrou na semi-obscuridade da sala. A mobília de madeira maciça lembrava os anos cinquenta do século passado. Não havia moscas e o ar era fresco e isso reconfortou-o. Atrás do balcão o tasqueiro vociferava enquanto apanhava os cacos do chão.
- Bons dias!, disse o médico. - Está aberto?
- Bons dias!, respondeu o homem, ainda de pá na mão. – Pode entrar! Desculpe este meu praguejar. mas de há um mês para cá acontecem coisas estranhas nesta casa! Lamentou-se enquanto despejava o lixo no caixote. - Olhe que hoje já me caíram da parede três pratos, e sem ninguém lhes tocar, nem passar uma corrente de ar! Ontem dei com a torneira da cerveja de pressão aberta e foi-se um barril que tinha aberto momentos antes!
Hipólito sorriu e tentou amenizar-lhe a irritação. -Tenha calma que há dias assim! Andamos preocupados com qualquer coisa e nem reparamos no que fazemos! Se ainda há cerveja que tenha sobrado, podia arranjar-me uma caneca, por favor!, pediu o médico. - Está um calor que lembra Julho! Se não encontrava aqui este oásis, creio que caía na próxima valeta!, exagerou.

O vendeiro acercou-se do balcão, serviu-lhe um pratinho de tremoços e a bebida, que médico despachou de um trago.
- Está um calor infernal! Qualquer dia o deserto do Sahara entra pela península ibérica e vamos ter de andar de camelo e beber chá de menta!, gracejou.
Depois de um Ahh reconfortante, Hipólito pediu outra caneca, pegou num tremoço e anotou: - Vejo que aqui se mantêm os hábitos antigos de adivinhar a vontade do cliente!
- É regra desta casa pôr sempre um petisco para picar, quando se serve uma bebida. Uma orelha de porco de coentrada, um polvo à galega, umas favas com chouriço, umas fatias de queijo ... qualquer coisa bem apurada, mas, neste último mês, como lhe disse, temos andado às voltas com uma série de acidentes, e só temos tido tempo para tremoços, azeitonas e favas secas! A minha mulher até diz que temos a casa assombrada!

Hipólito dispôs-se à conversa e o taberneiro prosseguiu:
- Ele são ruídos estranhos à noite, ferramentas que desaparecem de um local para aparecerem dias depois onde menos se espera, portas que batem sem ninguém estar por perto e tudo isto desde que a minha irmã, que ficou viúva, veio morar connosco. A gente até brinca com ela, mas lá que coincidiu, isso ninguém pode negar!
- E no meio dessas contrariedades, aconteceu alguma que fosse um grande mal?, insistiu o médico, que de repente assumira o caso como se fosse um detective.
- Coisa grave, … que me lembre, não aconteceu. Mas têm sido tantas fora do normal, que até parece bruxedo!, respondeu o homem, com uma vaga esperança numa solução.

O médico levantou-se para se certificar que os pratos pendurados na parede estavam bem fixados e que os que tinham caído tinham o mesmo tipo de suporte. Depois, voltou ao balcão, bebeu dois goles de cerveja e atreveu-se a mais uma pergunta. - Desculpe a minha curiosidade, mas sinto que talvez possa ajudar a descobrir o que o atormenta. Onde residia a sua irmã antes de vir para cá?
O tasqueiro, levantou o olhar, surpreendido: - Vivia em Vimioso, em Trás-os-Montes! O que é que pensa que poderá estar por detrás disto?
O médico, pegou-lhe no braço e convidou-o a sentar-se na mesa mais próxima, não fosse a estranheza da notícia causar-lhe uma sulipampa. Depois, pôs o seu melhor ar de entendido e disse-lhe, do mesmo modo como daria a notícia de uma doença não fatal, mas a merecer grandes cuidados.
- Tudo aparenta de que se trate de um trasgo que tenha seguido a sua irmã. Não se preocupe que não vai passar disto, desde que não dê sinal de estar irritado. Se o tolerar, passado um tempo, ele vai para outra casa, provocar outro.

- É capaz de ser isso!, confirmou o pobre homem. - A minha mulher numa destas noites de lua cheia, quando veio cá abaixo ao estabelecimento, por causa de um ruído, pareceu-lhe ter visto qualquer coisa, como um rato vermelho, a esconder-se por detrás do balcão!
- Então é quase certo! Eles vestem-se de vermelho e usam um gorro de bico na cabeça. Se o tivesse visto coxear da perna direita, tínhamos a confirmação. Eles vivem mais para o interior do país, mas muitas vezes seguem as pessoas de lá, nas suas deslocações. Só querem divertir-se!
Há uns anos tive um lá em casa. Escondia as chaves do carro, fazia desaparecer uma meia de cada par, comia as sobras dos bolos do frigorífico e punha nódoas na roupa lavada. Deve-me ter perseguido num dia em fui com o meu neto ver um arco-íris. Como deve saber, eles fabricam uma substância parecida com o ouro, que colocam no pote que está no fim do arco e que desaparece quando a gente se aproxima. Ficou uns dois meses connosco, mas como a minha casa tem muita luz e eles preferem sótãos e adegas, foi-se embora!
No seu caso, como o seu estabelecimento é pouco iluminado, se quiser ver-se livre dele mais depressa, tem de o desafiar a fazer uma tarefa impossível, como trazer uma cesta de água do mar, clarear uma ovelha negra ou outra coisa do género. Como ele acha que sabe fazer tudo, vai ficar exausto a tentá-lo. Então fica com o orgulho ferido, sai e não volta. 

- Obrigado pela informação! Bendita a hora em que entrou na minha casa! Já me tinha esquecido da existência desses seres. Quer mais um fino ou prefere uma sande de presunto?. O taberneiro estava visivelmente satisfeito. Pelo menos já sabia que se não tinha que se preocupar e que se mostrasse irritação a coisa iria de mal a pior.

O médico agradeceu, aceitou uma garrafa de água para o regresso e despediu-se. Depois, meteu-se pela estrada, a pensar se não haveria zanganitos destes na política. Aquela candidatura de última hora de Kristina Georgieva a Secretário-Geral das Nações Unidas e a de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, tinham características que lembravam as suas traquinices …

sábado, 1 de outubro de 2016

Lembranças do Olimpo (19)


Hipólito teve uma noite descansada e acordou já o sol ia alto. Nada como ser domingo e não ter preocupações com missas ou qualquer outro evento social a cumprir, pensou. Gostava da comunidade onde residia, mas encontrá-la numa missa era um preço demasiado alto. O padre era um sujeito imbuído de uma mentalidade tacanha, um crente em que as sociedades só têm um modo de se organizar, o seu, incapaz de qualquer gesto de humor em público, daqueles que repete à exaustão "Graças a Deus muitas, Graças com Deus nenhumas!".
Tivera a má experiência de o ouvir em três funerais a repetir "ad nauseam" a mesma fórmula, sem anotar a mínima particularidade daqueles seres que definitivamente nos deixavam, e saiu revoltado.
Não entendia que alguém pudesse subir a um púlpito sem ser capaz de um elogio fúnebre. Da primeira vez ouvira-o na missa de corpo presente da mãe de um amigo seu. Uma analfabeta que ficara viúva ainda jovem e que conseguira dar um curso superior aos três filhos. Da segunda, vira-o chegar atrasado e "despachar" o morto em menos de três penadas e da terceira, agrupara numa cerimónia, missas por um montão de falecidos e um baptizado.
Também as histórias que contava, dos martírios dos Santos primordiais pareciam-lhe ficções da Marvel e, lembravam-lhe as dos fanáticos religiosos do Islão actual, à espera que uma qualquer surata lhes dê acesso a um Paraíso do tipo “Club Med”.

Depois deste pensamentos, foi ao quarto de banho e olhou-se ao espelho.
- Estás a ficar sábio de mais!, disse à sua imagem. - Já não consegues achar graça à incoerência humana!
Depois, lavou cara e reconsiderou: - Deixa-te dessas merdas, que "p´rá frente é que é o caminho!", mesmo que duvides do lado para que estás virado!
Ajeitou o pijama, preparou os sucos para o pequeno-almoço e quando passou pelo Nkisi e lhe deu os bons-dias, lembrou-se da pergunta que ficara pendente da noite anterior.

O Nkisi, que devia estar já à sua espera, respondeu prontamente.
- Bom dia! Gostava de te ajudar, mas sou um espírito que anda com os pés na terra. Ainda por cima, sempre por África. São os meus anos que me dão vantagem, por já ter visto muita injustiça e montes de boa gente a morrer por más causas. Os meus poderes são limitados. Ajudo com conselhos, mas sem aquela magia dos milagres, com que todo o ser humano parece estar a contar!

- Obrigado!, respondeu o médico. - Hoje a minha mulher foi trabalhar e estou sozinho em casa. Era uma óptima oportunidade para vires comigo e falarmos. Eu ando a ler umas coisas sobre a expansão do Homo sapiens por este planeta, e gostava de tirar umas dúvidas contigo. Como foi em África que ele nasceu, tu, por certo, sabes histórias da sua actividade primordial.

O Nkisi, como que ganhou um brilho diferente. Há anos que ninguém se dispunha a ouvi-lo sobre um assunto tão vasto e, o facto do médico se dispor a dar-lhe ouvidos, envaidecia-o.
- Como tens tempo, vou explicar-te. Não sei se sabes, mas os primatas raramente formam grupos com mais de 50 elementos e os primeiros humanos a que vocês chamam de Homo erectus, neanderthalensis, habilis, … estavam limitados a grupos em que todos se conheciam e, nessa circunstância não conseguiam ultrapassar os 150. Foi com o aparecimento dos mitos religiosos que foi possível ao Homo sapiens fazer com que cada vez mais indivíduos colaborassem no mesmo objectivo e começassem a dizimar as outras espécies.
Como todas as religiões colocaram o Homem como figura central, deram-lhe a oportunidade de ser vítima dos seus desejos.

- É um facto!, retorquiu o médico. – O homem convenceu-se de que era o único ser vivo portador de alma, mesmo que pareça que anda muito desalmado por aí!
O Nkisi concordou. - E não é por se ser rico ou ter um curso universitário!, continuou. - Há que ter respeito pelas outras formas de vida, pelas pedras, pelos rios e pelos mares. São os desalmados que há 30.000 anos andam a dar cabo da Terra. Antes de se ter inventado a roda já eles tinham acabado com mais de metade dos mamíferos terrestres com mais de 50 quilos.
Temo que os deuses tenham decidido pôr cobro aos seus desmandos!

Hipólito, sentiu a ameaça como real e perguntou assustado. - Mas se o executarem, vai tudo a eito, como fizeram os cruzados à população de Béziers em 1209, ou os que têm alma ficam para ocupar o espaço que sempre lhes foi devido?
- Lá isso, não sei! O mais provável é haver quem se safe!, respondeu o espírito.
– E será que eles esperam por 2030, para dar tempo a que a NASA chegue a Marte, ou achas que catorze anos é muito tempo!, insistiu Hipólito. – E se alguém influente no Vaticano, no Islão na administração Obama, na China, na Índia ou na Rússia, der uns passos no caminho certo e a Economia deixar de necessitar do crescimento que os actuais economistas desejam? Será que eles suspendem essa reprimenda?

- Não estou a par da política mundial para te responder!, admitiu o Nkisi. - Mas nestas coisas, um bater de asas de uma borboleta é muito importante!. E depois para lhe amenizar o dia, continuou: -Mas vejo que já acabaste a refeição. O melhor é arrumares-te e ires dar uma volta que, se não deixas de pensar nisso, ainda dás em doido! Para mais, depois de teres passado uma semana sem apanhares sol na moleirinha! O que for, se verá! E não é por muito madrugar, que amanhece mais cedo! Vês como também sei uns provérbios!

Hipólito, subiu com a estatueta, colocou-a no seu sítio e obedeceu-lhe. Minutos depois estava na praia a dar pontapés nas algas, que também é para isso que todas as semanas há domingos .