sábado, 9 de abril de 2016

Barata amarela


Nessa altura, eu ria-me de tudo o que fugisse ao habitual, principalmente quando as situações o não aconselhavam, fosse inovação, disfunção, facto insólito ou acidente.
É assim a vida dos jovens quando o desconhecido lhe é apresentado de chofre e não têm "matriz" onde o possa integrar. É fácil surpreendê-los até que a vida os faça contar com os factos pouco comuns e passarem a considerar que são raros os impossíveis.
O nosso passado está recheado dessas surpresas que, se acontecessem agora, nos mereceriam um olhar diferente ou, até, nenhuma atenção, do mesmo modo que ao relermos um livro há muito tempo parado numa estante, nos surpreendemos com entrelinhas a que não tínhamos dado a devida importância.
Vem esta conversa a propósito de um caso da minha última Urgência, onde um homem se debateu duas horas com um tique que repetidamente lhe provocou contrações dos músculos da parede abdominal, num quadro clínico que tem o nome pomposo de Síndrome de Gilles de la Tourette.
Aquela crise deixou-o em exaustão e só regrediu à força de muita medicação.
Nunca tinha visto igual, mas não me passou pela cabeça rir daquele pai de família a braços com um problema que o desacredita e impede de ter uma vida pessoal e profissional normal.
Mais tarde, lembrei-me do "Barata Amarela", que, embora vivesse nas minhas imediações, raramente aparecia, talvez por se obrigar a uma vida distante dos olhares de quem se ri do insólito.
Os seus tiques eram comentados sem comiseração e, quando algum de nós o identificava, imediatamente se focava nele, pois sabia que era uma questão de tempo para uma cena hilariante.
Um tique pode ser discreto ou um gesto abrupto e largo imediatamente perceptível.
O "Barata Amarela" movia repentinamente a metade direita do corpo. O braço e a perna fugiam-lhe, ao que se lhe seguia um movimento em saca-rolhas da cabeça, em direcção ao céu. Coisa de três segundos, mas o suficiente para o fazer notar onde estivesse. Incapaz de assumir o tique, tentava disfarçá-lo, integrando-o num outro mais complexo, como se, de repente, iniciasse uma nova actividade.
Ganhara a alcunha num desses episódios quando, numa paragem do eléctrico, se atirou para cima da senhora do lado, e se justificou apontando para o local para onde lhe tinha fugido o sapato, gaguejando: "Uma barata amarela!"
E era isso que esperávamos. Primeiro o tique e depois o “disfarce”, para termos que contar à mesa dos nossos catorze anos.
- Vi o “Barata Amarela”, no eléctrico. Ia seguro a um puxador do tecto, quando lhe deu o tique e o tentou disfarçar simulando que se lembrara de uma música e começou a marcar o ritmo com a mão e a perna!
E riamos, sem entender que aquilo era doença.
Não era “bullying”, era um nada fazer para melhorar a sua auto-estima, como se, para ser cidadão, só contassem os actos e não os pensamentos, as palavras e as omissões.

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