sábado, 6 de fevereiro de 2016

Permanente 1981



- Espera! Não saias já, que daqui a nada a chuva abranda!, disse a mulher, preocupada.
- Não posso! Tenho seis domicílios a fazer e, queira Deus, que não apareçam mais quatro. O modo como está pegada, parece para ficar. Já são quase 22:00h. Se não for já, vou chegar muito tarde! Dois são aqui perto. Entretanto pode ser que a chuva cesse. Vou tentar parar mesmo em cima das portas. Com este temporal, não deve andar ninguém na rua.

De facto assim foi. Chovia a potes ou, como dizem os franceses “comme vache qui pisse”. Rios de água pelas ruas, poças a esconder buracos, a insuficiência do pára-brisas para tanta água e os vidros embaciados a obrigar a limpeza constate para ver o caminho, as placas toponímicas e os números das portas. Mas porque é que ainda não divulgaram o ar condicionado para os automóvei???! Nem com o aquecimento no máximo consigo visibilidade suficiente. Para mais, de cada vez que saio, trago para dentro do carro um quarto de litro de água na roupa. Mas o que tem de ser tem muita força e não vale a pena estar com choradeiras.

23:30h. Já vi três. Todos a dizerem mal do tempo e a lamentarem-me.
-Oh Sr. Dr.! Andar por aí com uma noite destas!
E eu com os pés encharcados, a fazer de forte.
-Deixe lá. A vida não é fácil. Às vezes, quando não nos metemos nelas, é que ficamos pior. Todas as profissões têm coisas boas e dificuldades que nos obrigam a um esforço para além do habitual. Não vão ser umas gotas de água a mais, que me vão fazer parar em casa. Ando de carro, não ando ao tempo!
Mas também não me via a ir à Central justificar, que depois de ter aceite aquelas chamadas e ter gente à minha espera, soçobrara àquela contrariedade.
...
P’rá frente é que é o caminho, que só faltam três, dizia para dentro, sem saber o que me esperava. Era uma prova que, por certo, outros já tinham vivido e que eu também tinha de ultrapassar, sem mariquices, que um homem é um homem e um gato é um bicho!  
O quarto era numa rua da Foz Velha. Depois, no regresso, meteria pela Avenida Marechal Gomes da Costa e apanhava os dois que faltavam, no caminho de casa.

Entretanto a chuva intensificara-se. Descera a Rua Dom Pedro Menezes, passara as piscinas do Fluvial e entrara na Rua de Sobreiras, que margina o Douro. Estava atapetada por um lençol de água. Medi-lhe a altura por um carro que passou em sentido contrário, disse para dentro “ainda há malucos como tu!”, e fui por ali de cabeça encostada ao pára-brisas, pano na mão, a ver onde punha os pneus, a não mais de 30Km/h.
De repente – TUM! TUM! Meto uma roda num buraco e o motor pára.

- Ggggghhhhh!!!!, - Gggggghhhhhh!, - Ggggghhhhh!!!!, - GGGGGGHHHHHHHHHHhhhhhhhhhhhh!! - GGGGGGHHHHHHHHHHhhhhhhhhhhhh!!
O motor de arranque não consegue pôr o carro a trabalhar.
Mais - Ggggghhhhh!!!! - Ggggghhhhh!!!!
- GGGGGGHHHHHHHHHHhhhhhhhhhhhh!! - GGGGGGHHHHHHHHHHhhhhhhhhhhhh!!
O melhor é parar antes que acabe a bateria.

São 24:15h. Não passa ninguém e estou no meio da rua.
Ponho os mínimos. Olho em volta à procura de uma cabine telefónica. Há uma a uns duzentos metros. A chuva abrandou.
Saio. Meto os pés na água que corre em torrente e, em segundos, fico com as calças molhadas até acima dos joelhos. 
Dou graças por ter moedas no bolso. Entro na cabina e ligo: 25442 e espero.
- Está!? Quem fala?
- Sou eu, pai! Estou parado junto ao rio. Passei por cima de uma poça de água, e o carro pifou! O motor de arranque funciona, mas o carro não pega. Deve ter espirrichado água para o motor.
- E o que é que tu andas a fazer por esses lados a estas horas?
- Isso agora não interessa! Podes vir aqui ajudar-me?

Entretanto deixara de chover. Esperei meia hora até ele chegar, atarantado, com a roupa por cima do pijama.
- Deixa lá ver!
Ggggghhhhh!!!! Ggggghhhhh!!!! 
- Deixa limpar as velas! 
Cinco minutos depois.
-BBBrrrrrrrrruuuuuummmmm!!!!! BBBrrrrrrrrruuuuuummmmm!!!!! BBBrrrrrrrrruuuuuummmmm!!!!!, o motor a trabalhar como se não tivesse passado nada.
- Entrou-te água nas velas. Nada de maior! 
- Porreiro! Obrigado! Volta à cama que eu ainda vou a meio e vou aproveitar não estar a chover!
- Eh pá! Tu não devias …
- Adeus! E mais uma vez obrigado. Amanhã falamos!!

 No quarto domicílio lamentaram-me as calças, no quinto o aspecto dos sapatos, no sexto já não esperavam por mim.
- Posso utilizar o seu telefone para ligar para a Central?
- Faz favor!
- Sr. Sousa! Estou no último. Alguém mais telefonou?
- Não, Dr.! Hoje está com sorte!
- Sortes destas não lhe desejo, Sr. Sousa! Estou molhado até à cueca! Até Domingo!
 …
São 03:30h. Entro em casa, sorrateiro. Dispo-me na cozinha e penduro a roupa numa das cadeiras. Tomo um banho quente e enfio-me na cama.
- Apanhaste muita chuva?
- Um bocadinho! Dorme, que é tarde!

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