segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Lar Lembranças do Olimpo (12)


O Sporting ganhara e mantivera o primeiro lugar. Hipólito, que sofria de clubite dolorosa, fora ao Bar do Hospital tomar um café e picar portistas e benfiquistas.
- Ah leão! Que andas de unhas afiadas!, disseram-lhe os colegas, - Mas cuida-te, que o único clube português abençoado pelo Papa é o FCP!
- Não há volta! Já passámos o Natal! Este ano o Campeonato é nosso!
Riam e descomprimiam. O café da manhã, era um ponto de encontro para outros saberes ou notícias de quem não aparece mas, como as oportunidades não escolhem hora nem lugar, muitos assuntos técnicos era ali que encontravam solução.

- Dona Lucinda ainda bem que a vejo! O sistema informático está impossível! Se fazemos uma prescrição para o exterior, vai abaixo, se a fazemos para um doente internado, demora mais de dois minutos a abrir. E anda aí gente vaidosa com a informatização dos registos! Não sei se é a vossa manutenção que está a falhar ou se é o programa que está mal feito, mas alguém tem de se chegar à frente e dar uma volta nisto.
E o café, nesse dia, sabia um pouco a azedo.
Outras vezes sentava-se na mesa das Assistentes Sociais para lhes sentir o pulso.
- Dra. Lurdes, que me diz? Nós temos cada vez mais idosos sem retaguarda familiar e cada vez é maior a dificuldade em encontrar soluções para que os internamentos se não prolonguem!
E o café arrefecia.

Nessa manhã sentara-se na mesa dos Internos. Falava-se de encarniçamento terapêutico e Hipólito acrescentou:
- E o encarniçamento diagnóstico? Isto é, ter já informação suficiente para poder decidir e submeter o doente a mais exames só para conhecimento médico ou para dar a sensação de que ainda é possível prolongar a vida com qualidade?
A Lúcia, que era a mais velha dos internos, retrucou:
- Dr. Hipólito, se não tivermos práticas defensivas, as famílias criam-nos problemas de difícil solução.
- Nem todas! E é aí que é preciso actuar. Há muita gente que entende que chegou o fim do seu familiar e o sofrimento que mais exames e terapêuticas podem causar. Claro que para se fazer uma afirmação destas, é necessário que o médico ou a instituição mereça confiança.
As situações dúbias devem ser discutidas com médicos seniores para que o ónus da decisão de passar um doente para cuidados paliativos, não fique sobre o médico que tem o doente a seu cargo.

A conversa ficou ali porque o café chegara ao fim e o trabalho ia a meio.
Voltara à enfermaria, revira as terapêuticas, preparara altas, quando se surpreendeu com o nome de uma doente acabada de chegar, com o diagnóstico de Pneumonia e Amnésia.
Tinha sido admitida no Serviço de Urgência no fim-de-semana e ficara em vigilância na Unidade Polivalente. A punção lombar revelara uma irritação meníngea.

Voltou à enfermaria e olhou-a. Estava sentada na cama com a revista Blitz na mão. Tinha uma idade indeterminada que não escondia ter sido, em jovem, uma mulher de formosura serena. No seu punho esquerdo, uma fina pulseira de ouro tinha o seu nome gravado.
- Bom dia dona Eurídice! A senhora está melhor?
- Bom dia, Dr.! Obrigada! Parece que tive febre alta e um período de confusão, mas hoje já me sinto melhor!
- Desculpe interromper a sua leitura, mas estive a rever o seu histórico no SClínico e não encontrei registos anteriores. A morada que está na sua identificação é a de uma pensão e não temos informação de qualquer familiar. A senhora vive cá?
- Eu hoje já me lembro de algumas coisas! Sei que acordei na margem de um rio, cheia de frio e que tive de procurar uma pensão, onde estive dois dias cheia de tosse e febre, até me trazerem para este hospital!
Hoje de madrugada fiz uma intensa introspecção que me trouxe à memória factos soltos que estou a tentar organizar. Por exemplo, lembrei-me de ter nascido na Grécia e que o meu marido é músico e que se chama Orpheu. Olhe! Até pedi à enfermeira que arranjasse uma revista de música a ver se ele aparecia lá, mas a palavra mais parecida com o seu nome é Orfeão.

Hipólito não queria acreditar. Tinha conhecido os deuses gregos, em carne e osso, há pouco menos de um mês e agora até mortais da sua mitologia lhe estavam a aparecer. Intrigado, arriscou a perguntar:
- Dona Eurídice! Desculpe a pergunta, que nada tem a ver com a sua situação clínica, mas será que a senhora se lembra de ter sido mordida por uma serpente no dia do seu casamento?
- É verdade!, exclamou. - E depois … morri?! … Foi assim?
- Se a senhora é quem eu penso, deve-lhe ter acontecido qualquer coisa semelhante!

Não havia dúvida. Eurídice saíra do Hades pelo rio Lima, confundindo-o com o Lethes, que fazia as almas esquecerem-se de todo o passado no regresso ao mundo dos vivos. Este só lhe causara a doença.
Hipólito procurou ouvi-la contar a sua história de amor, dando-lhe as dicas para que ela completasse, enquanto lhe assomavam aos olhos grossas lágrimas.
Falaram de Orpheu e da sua música, e lembraram o seu desespero após a sua morte e a descida ao submundo para a recuperar.

- Lembro-me disso! . ... E depois! Que foi feito dele?, perguntou Eurídice.
-Que foi feito dele?, repetiu o médico. – Vocês não se encontraram no Hades?, insistiu. - Essa história passou-se há mais de dois mil e quinhentos anos. É muito tempo, dona Eurídice!
- Não sei se sabe que o Hades é uma espécie de limbo. As almas andam por ali feitas zombies, sem qualquer alegria ou tristeza. Não interagem umas com as outras. É como um SPA onde se relaxa do stress das vidas já vividas, enquanto se aguarda uma reencarnação. Por isso, não sei o que se passou depois da minha morte!
Hipólito olhou os fios de água que corriam dos seus olhos e, procurou a explicação mais simples para a não fazer sofrer, e disse só: - Nunca mais tocou até morrer!, evitando contar que se havia tornado amargo e solitário, até acabar barbaramente trucidado por um grupo de mulheres bêbadas adoradoras de Dionísio.

Eurídice limpara as lágrimas. Uma suave ruga assomou à sua testa, quando de novo se lhe dirigiu:
- Dr.! Obrigado por me ter ajudado a recordar esses factos. Devo ter saído do Hades pela porta errada. Devia ter saído pela que diz Lethes. Não sei o que terá acontecido!
Hipólito tentou justificar-lhe o erro: - Talvez tenha confundido o rio Lethes com o rio Lima. É que de Viana do Castelo a Ponte de Lima, não faltam alusões a esse rio da mitologia grega.
- Se calhar foi isso! É o que dão as pressas! Admitiu Eurídice. – E agora, Dr.?! Quando me der alta, para onde irei?
- Posso pôr o problema à nossa Assistente Social, mas creio que, dadas as circunstâncias, melhor será regressar ao Hades. É fundamental que a sua nova vida comece do zero e que a sua alma venha esquecida de todas as outras vidas que já teve.
Eu conheço uns deuses antigos que lhe podem dar uma ajuda. Se já se sente com forças, hoje à tarde, podemos ir ao encontro deles para regularizar a sua situação.

- Dr. Hipólito! Você é um amor! Fico à espera de si depois do almoço. Posso dar-lhe um beijo?, e, sem mais abraçou-o e espetou os lábios contra os seus.
Hipólito saiu corado, enquanto ela feliz, confirmava, sorrindo:  
- Não se esqueça! Depois do almoço!

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