segunda-feira, 28 de julho de 2008

Dom Quixote de la Mancha

As histórias raramente são inventadas, fundamentam-se na realidade. A grande diferença está na qualidade do observador/narrador.

Em Abril/08 surpreendeu-me uma comunicação: “Dom Quixote de la Mancha: Demência Frontal ou Intenção Moral?” efectuada pela Dra. Élia Baeta, Neurologista do CHAM, EPE, no 2º Congresso de Psiquiatria e Saúde Mental de Viana do Castelo.

Com sua permissão, resumo os tópicos:

Miguel de Cervantes, era filho de um cirurgião, o que lhe deve ter facilitado o contacto com indivíduos insanos e com a literatura médica. Publicou em 1605 e 1614, os 2 volumes do “El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha” que o tornaram mundialmente famoso.
Cervantes soube retirar, da própria experiência de vida, a figura de D. Quixote que, representando o inocente e incondenável louco, poderia tomar atitudes e proferir opiniões sem trair o seu criador.

Dom Quixote era um fidalgo previamente saudável, capaz de assegurar o governo dos bens e da educação da sobrinha, que desenvolveu uma progressiva alteração de comportamento.
Aos 50 anos abandonou os seus anteriores hábitos, desleixou a administração das suas propriedades (que até vendeu ao desbarato para “comprar livros de cavalarias”) e começou a negligenciar os cuidados consigo próprio.
A ideia de se fazer cavaleiro andante, de eleger como sua dama uma moça lavradeira que jamais havia sabido do seu interesse (Dulcineia), o não respeito pelas regras e rituais estabelecidos, que degenera em situações prejudiciais, tanto para ele como para os seus fiéis companheiros (Sancho Pança e Rocinante), configuram uma desregulação do comportamento social.
A desinibição, impetuosidade e violência mal controlada, associadas à rigidez mental e à inflexibilidade são patentes em muitos dos episódios.
A indiferença face às adversidades, a perda de lucidez, as ilusões, a fantasia e a confabulação dominam a sua realidade.
Ao longo da obra, enquanto é notado algum refinamento de Sancho Pança, testemunha-se o empobrecimento do discurso de Dom Quixote.
Era «seco de carnes» mas a descrição evidencia emagrecimento progressivo. Por fim a morte por doença febril sugere doença infecciosa a complicar estado debilitado, característico dos indivíduos com demência.

Cervantes descreve o seu herói Dom Quixote com as alterações de personalidade e comportamento características de uma perturbação originada por uma lesão nos lobos frontais.
A Demência Fronto-Temporal (DFT) foi descrita nos finais do século XX. Esta alteração, degenerativa e incurável, manifesta-se sobretudo por alterações da personalidade e do comportamento, começa por volta dos cinquenta anos, tem curso progressivo e conduz à morte.

A história não descreve um indivíduo com perturbações anteriores de carácter que sugira doença Bipolar. Também não tem a idade mais característica para o seu aparecimento, nem evolução com agravamentos e melhorias.
Aparentemente esta conduta não foi precedida por traumatismo e a forma de início também não parece compatível com uma doença vascular.
Um tumor frontal poderia ter mimetizado este quadro, mas teria também provocado cefaleias e sonolência.
O diagnóstico mais plausível parece ser então o de Demência Degenerativa. Apesar da demência mais frequente ser a Doença de Alzheimer e poder atingir, em alguns casos, indivíduos do grupo etário deste personagem, não se evidenciou amnésia, apraxia ou desorientação, o que torna este diagnóstico pouco provável.
Apesar de cursar com ilusões, não preenche os critérios da Doença de Corpos de Lewy, porque habitualmente esta doença atinge indivíduos mais idosos, tem um curso flutuante e evidência de um síndrome extrapiramidal ou quedas.
Nesta idade um síndrome frontal, marcado sobretudo por alterações do comportamento de carácter progressivo, conduzindo à morte deve fazer pensar numa Demência Fronto-Temporal (DFT).
As alterações de comportamento preenchem os critérios de diagnóstico deste tipo de demência: agressividade, impulsividade, inflexibilidade, comportamento inapropriado, ilusões e falsas concepções.


É interessante que Cervantes tenha escolhido este carácter tão peculiar. O propósito mais provável seria o de, através deste herói inocentemente louco, poder criticar a sociedade sem correr risco de susceptibilizar a «Santa Irmandade». Um cavaleiro andante, como é frisado na obra, não podia ser preso, mas podia proclamar a liberdade, excomungar padres e costumes e proferir inconveniências, sem qualquer imputabilidade.

Para a Neurologia, “El Ingenioso Hidalgo Don Quixote” revela o primeiro caso conhecido de variante frontal de DFT, preenchendo os critérios major de diagnóstico e evidenciando ainda muitas características sustentadoras do mesmo.
A novela de Cervantes é rica em informação de natureza médica, mais do que é habitual nas obras literárias da época. Contudo, de modo nenhum esta nova perspectiva interpretativa tira o valor a esta jóia da literatura, ao seu criador Miguel de Cervantes, e ainda menos ao nosso herói do mundo da fantasia e do sonho, Don Quixote de la Mancha.

2 comentários:

Anónimo disse...

interessantíssimo blogue, parabéns! rita ferro

Grazi Sousa disse...

eu queria saber o resumo do capitulo 1 ao 6 ... esse resumo ai num ajudou bosta nenhumaaaaaaaaa !!!